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Almujah acabava sempre por escolher o rumo menos óbvio. Serbel começou feliz e acabou na miséria. Destenau não deixou verdadeiramente de acreditar na juventude eterna. Ternerf confiava na sabedoria de atravessar túneis agarrado ao exterior dos comboios. Falarq sorria no intervalo das sombras. Ab-rahn era capaz de manter um baralho inteiro a descrever círculos no ar. Jkar discutia com fantasmas e evitava subir ao eixo. Regard habituou-se a recitar de trás para a frente e nunca lhe perdeu o hábito. E todos conheceram Deus.
Prólogo - A HISTÓRIA ANTES DO COMEÇO
A história antes do começo é, em muitos casos, o fim de outra história.
LER
Larga-me da mão, porra. Que mais queres tu de mim? – Mas se estivesse assim tão calma, não teria escondido a embalagem atrás das costas, apertando a tampa, tentando sacudi-la disfarçadamente.
Nunca tinha visto olhar tão frio em ser humano.
- Nada mais – a voz dele, tão vagarosa que parecia estar pedrado, saiu de uma caverna abismal, profunda como o inferno. Foi como se enchesse o cubículo. Visto assim, a contraluz e na imponderabilidade do pré-eixo, as mãos e braços desgarrados no ar, surgia de facto como uma criatura proveniente desse inconsciente colectivo.
Encontrou finalmente o furador na bolsa das calças. Foi capaz de mover-se depressa, ancorando-se com o pé esquerdo à ampara da parede, a mão direita apontando a embalagem, a esquerda golpeando, desesperada, a tampa.
O jacto lançou o pequeno tubo de metal pelo ar, golpeando-o no sobrolho.
Ele sorriu.
Talvez se tivesse mesmo tornado num demónio. Talvez nunca tivesse sido pessoa, tudo falso, tudo um acto. A realidade, nos momentos finais – ela sabia que os eram -, despia-se de pretensões e mostrava a verdadeira cara. Foi o que ela sentiu.
- Agora está a chorar... Bebé – continuando a sorrir, tirou um cigarro do bolso, tirou um isqueiro da manga.
- Como conseguiste fazer passar… - horrorizada, as lágrimas convulsivas a taparem-lhe a vista, sentia-se suja e impotente, como ele tinha descrito, um bebé.
- Julgas que a mercadoria é mesmo toda inspeccionada exaustivamente? – agora mais desperto, mais enérgico, envolto na nuvem de fumo que se acumulava no ar parado, ainda a assustava mais, ia acontecer. Ia morrer.
- Tens consciência…
- … da monotonia da vida? Obviamente. Já me conheces.
- Vais matar-nos aos dois…
- Não, querida. Só a ti, que ninguém conhece. Eu já sou famoso.
Ela pouco tempo teve de ler o sinal de aviso por cima dele, as letras brilhantes do ventilador do tecto, perto do qual rodopiava ainda o tubo, exausto de conteúdo mas não de momento. PROIBIDO APROXIMAR MATERIAL INCANDESCENDENTE PERIGO DE EXPLOSÃO. Obrigou ao encerramento do sector por debilidades provocadas na estrutura. Ainda decorria a reparação, dois meses depois, quando a equipa de investigadores declarou desconhecer o número ou a identidade das vítimas mas que a origem estava de certeza em conflitos amorosos. Ambientes confinados são um desafio à convivência comum, diria o oligarca no comunicado mensal, e apesar da sua natureza infinita, viver no espaço é viver em permanente claustrofobia, pelo que urgia a população e a classe médica ao uso das realidades simuladas para curar as ansiedades.
1 - JKAR ENTRE DOIS MUNDOS
Jkar nunca chegou verdadeiramente a conhecer Deus. Pelo menos até ao dia em que despiu a casca humana e enfrentou pela primeira vez os fantasmas que sempre temera ver na periferia do olhar. Quando estes se revelaram ecos de si próprio, não considerou que estivesse louco. A loucura era, afinal, uma outra forma de criatividade. E até o caos precisa de um autor.
LER
A cena tinha a delicadeza de uma pintura de Ishimura. A tensão entre as figuras imóveis era mais que aparente. Transparecia dos nós dos dedos crispados, estendia-se entre ambas numa constelação invisível de feixes de frequência, numa trovoada silenciosa de clarões ultravioleta e infravermelhos, como o verter de uma bateria, o cumular do tempo numa aresta. Jkar imóvel, ali e não ali, um avatar shroddingiano, uma promessa e a sua frustração num latir da carótida. Rhona sente vontade de o esbofetear, de interromper aquela imobilidade com um gancho no queixo voluntarioso. Sente vontade de o abraçar. Sempre odiou quando Jkar se refugiava na comunicação metamodal; não que o pudesse censurar. A sua própria blusa psico-reactiva acende-se em fulgores de vermelho e violeta, anunciando a sua raiva, a sua dor, a sua confusão.
'Porquê?', é a pergunta que lhe escorre dos lábios, embora já soubesse a resposta. Ou pensasse que a sabia. Mas a verbalização é uma espécie de âncora, uma ponte, uma forma de o manter ali, de prolongar aquele momento. Queria tocá-lo, mas não se atrevia.
'Sabes porquê, pequena gazela', confirma-lhe Jkar, a tristeza no olhar incapaz de negar a determinação, o não arrependimento. '3457 mortos no espaço de um beijo, na fugacidade de um toque.'
'Como abrir uma comporta de vácuo', contrapõe ela, querendo ferir, querendo magoar. 'Como puxar um autoclismo.' O vermelho da blusa incendeia o violeta, contamina-o. Da mesma maneira que uma bateria de nano-transmissores sub-cutâneos incendeia o ar entre eles, invisível. Feromonas electrónicas; não, feromonas quânticas. Impressas as de um para as de outro. Como peças de um puzzle químico, exclusivo. Uma comunicação silenciosa entre eles, preciosa em situações de campo, delirante em situações de cama, dolorosa em situações de conflito. Como anjos, brinca ele; como formigas, retorque ela. Brincava, retorquia. Rhonda sente-se mutilada. Sente-se ofendida por ele ostentar a amputação com orgulho, com aquele maldito sentido do dever e da obrigação que punha em tudo o que fazia.
'Não tinhas nenhuma obrigação disso', acrescenta, complementando a blusa, a rede, como se assim pudesse recuperar algo, voltar atrás, estar ali, como devia ter estado. Mas como podia? Como lhe pôde ele esconder a sua determinação? Essa é que era realmente a pergunta não era? 'Como pudeste esconder-me isso?"
Tarde de mais. Antes que pudesse conter-se, as palavras escorriam-lhe dos lábios como ar de uma junta. A mesma pergunta que já lhe fizera uma dezena de vezes antes. Cerra os olhos. Não uma dezena. Não. Muito mais que uma centena. Um regresso obsessivo, como os dedos que não se conseguem manter longe da casca da ferida que ainda não sarou completamente, da língua que percorre a cavidade onde devia estar um dente. Onde devia estar Jkar. Como pudeste?
Jkar sorri, aquele sorriso que a enfurece, aquele sorriso triste de adeus contrafeito. Como se não tivesse sido ele a apertar o gatilho. Como se não tivesse sido ele a deixá-la sozinha. Pior do que sozinha. Incompleta. E as palavras: 'Sabes porquê, pequena gazela. 3457 mortos no espaço de um beijo, na fugacidade de um toque.'
Rhona morde o lábio inferior, sentindo o rosto pintado com o fulgor das chamas que parecem consumir as células bioluminescentes da blusa. Recusa-se a reiniciar o ciclo da discussão. Daquela estranha discussão que manteve já centenas de vezes naquele estranho espaço adimensional, um espaço construído da psico-memória acumulada nos limitados processadores metamodais. Um fantasma de Jkar para sempre gravado em cada poro da sua pele, em cada célula do seu corpo. Uma discussão que experimentou já em incontáveis variações em torno da derradeira gravação que Jkar lhe deixou, explorando, contorcendo, procurando deformar cada uma das palavras do seu companheiro em busca de uma explicação… de uma explicação que pudesse aceitar. Jkar, ali e não ali, olha-a com os seus olhos castanhos, muito líquidos, com a apatia enervante de um programa em modo de espera. Aguardando um deixa para ler uma fala memorizada.
'Não…', começa Rhona, sentindo a boca seca, sentindo os dentes muito brancos ameaçarem romper a derme do lábio carnudo. Leva a mão direita a acariciar-lhe o rosto. Sente uma surpresa desconcertante quando os seus dedos finos, trémulos, atravessam a face angulosa do amante, ao mesmo tempo que sente o calor da pele glabra, a firmeza das maçãs do rosto agressivas, os lábios grossos, escuros, que despem os dentes grandes, muito brancos, num sorriso caloroso. São só fantasmas. Como o de um braço decepado. Rhona retira bruscamente a mão, apercebendo-se de que fio nisso que ele a tornou… que ele se tornou… uma amputação… um corpo fantasma que ela arrastará consigo para sempre. Aperta os olhos com força, sentindo as lágrimas quererem furar-lhe as pálpebras. 'Não precisavas de fazer isso. Não sem me dizeres. Nem sequer sabes se foi realmente Almujah.'
'Quem mais minha pequena? Quem mais tinha acesso à Legba? Quem mais conseguiria passar deflagrantes e aceleradores pelos gorilas do Assento? Quem mais teria interesse em matar Milla Solove?'
'Era mulher dele, Jkar. Porra.'
'Era filha do presidente do Cartel Solove-Bruno.'
'Que tinha conseguido o divórcio da família há mais de oito rotações.'
'Não sejas teimosa, gazela. Já falámos disso muitas vezes. Ninguém se divorcia dos cartéis. Não definitivamente.'
'3457 mortos, Jkar! É muito para um crime passional! É muito para um acerto de contas entre cartéis!'
'Não para o Cartel Archangel. Não pelo monopólio da Legba.'
Rhona aperta os olhos com força. Sabe que perdeu outra vez o controlo à discussão. Já antes tinha trilhado aquela vereda. Já sabia o que lhe contraporia - A Legba é uma mentira que os cartéis puseram a circular para enganar os papalvos. Um novo ópio para um novo povo. Uma velha mentira para os novos tempos. - E sabia qual a resposta dele. O fervor quase fanático quando estende a mão etérea para lhe mostrar as duas ampolas de líquido leitoso que lhe rolam na palma da mão calejada. E a sua impossibilidade de intervir, de o agarrar pela camisola justa ao corpo firme e o sacudir… Poder sacudi-lo até ele despertar daquela obsessão que lhe tolda a objectividade. Que o levou a ocultar-lhe as suas intenções… Sacudi-lo até ele compreender que o conteúdo daquelas ampolas pode não passar de uma dose de sempre-em-pé, cortada com farinha e anfetaminas. Que não é nenhuma droga que lhe abre a porta para o Reino dos Mortos. Que não existem portas para os reinos da fantasia… a não ser uma sobredose de uma qualquer mixórdia que os pequenos traficantes impingem aos palermas endinheirados à saída das cabinas de porno-virtualidade.
Mas nada agora pode evitar o que se vai seguir. Apenas retardar. Apenas reviver uma e outra vez as escassas variações que o metaware lhe permite. Isso mesmo é projectado pela blusa psico-reactiva, um empalidecer das cores, um cansaço interior que faz desbotar a fúria num tom indiferente e triste.
Jkar olha para ela, mais uma vez convertido num avatar à espera de input. Mas os olhos são reais, captados por receptores metamodais que dispusera conscientemente onde quer que fosse que decorrera aquele último acto. E aqueles olhos que a fixam não deixam transparecer dor, perda ou arrependimento. Apenas amor. E a promessa de reunião. Como se fosse apenas um intervalo. E isso é o que a magoa mais. Isso é o que magoa mais naquela loucura: a perda desapercebida. As coisas que ficaram por dizer na esperança do reencontro.
E, naquele instante de silêncio entre o que foi e o que podia ter sido, a oportunidade passou. Rhona apercebe-se disso quando Jkar se move repentinamente, com uma brusquidão que não se coaduna com a languidez da discussão anterior. Como se tivesse havido um corte. Um corte mais brusco do que o provocado pelo processador a converter os dados de memória dérmica e de imagem metamodal num todo coerente. É antes um corte abrupto, como se a câmara tivesse sido desligada e voltada a ligar tempos depois. Quanto tempo? Obliterando quantas memórias? Impossível dizer. Rhona assiste desesperada aos movimentos seguros de Jkar, sabendo que é tarde de mais…
'Não tinhas nenhuma obrigação disso', diz, apressadamente, procurando fazer o tempo voltar para trás, querendo descobrir uma nova avenida ainda por explorar… Mas é inútil. Sabe que aquela parte da gravação não foi feita em metamodo, apenas integrada no constructo. Não há nada que possa fazer para interagir, não há reacção dos processadores. Sente a pele fria, gelada, subitamente privada da memória do contacto, da integridade total daquela quimera que ambos eram. Perda parcial de nocicepção. Halgoalucinose a espalhar-se-lhe pelos braços, pelo peito, fechando os dedos em torno do coração, apertando.
Jkar age como se ela não estivesse ali. Evitando conscientemente olhar para a câmara, sabendo que ela está ali, do outro lado da barreira temporal que o mecanismo escava na continuidade dos acontecimentos. Como se não quisesse que mais ninguém soubesse que está ali…
Os seus dedos compridos, tão elegantes, inserem lentamente as duas cápsulas no punho bojudo da pistola de injecção. Ouve-se um ligeiro zumbido que acompanha a carga dos aceleradores magnéticos. Acendem-se dois LEDs vermelhos no cimo da coronha. Piscam por breves instantes, depois imobilizam-se, verdes, a pele morena de Jkar distorcendo as cores que se lhe reflectem no rosto suado. Há momentos não suava.
Há momentos não estava prestes a morrer.
'Ok, pequena gazela', diz ele, levantando a pistola, levantando os olhos, fitando o vazio, fitando a câmara, fitando-a a ela. 'Presta bem …'
'…atenção.' Jkar levanta a cabeça, sentindo a venda ser-lhe removida dos olhos. Está sentado numa cadeira tosca, um qualquer nanoplastómero em fim de vida, já sem a flexibilidade necessária para manter uma estrutura automodelável. Olha em volta, para o compartimento decrépito. Não vê qualquer mobília no quarto, apenas uma cortina suja de plástico que faz as vezes de divisória, isolando um dos cantos do cubículo. O homem que acabou de dissolver os fechos enzimáticos da venda move-se com agilidade à sua volta apesar da corpulência. De uma prateleira de duraplast na parede por trás de si retira uma pistola injectora e duas pequenas ampolas que parecem cheias de leite estragado. 'Tens que perceber isto à primeira. Quando se pede a bênção de Legba, não há segundas oportunidades. Compreendes?'
Jkar faz que sim com a cabeça, os olhos correndo em volta do compartimento mergulhado em sombra. Apenas duas placas fotónicas, sujas e decaídas, se esforçam ainda por romper a penumbra com um escorrer de luz esverdeada. Jkar não sabe para onde o levaram. Tem a impressão de sentir uma diminuição de gravidade, como se estivesse próximo do eixo, provavelmente num dos bordéis abandonados quando a IA Donnermell foi destruída por um vírus militar nos primeiros tempos dos pactos inter-anelares. Para lá do toldo tem a impressão de movimento. Resiste à tentação de desviar para lá o olhar, mantendo-o fixo nas instruções que lhe eram dadas pelo esbirro dos Solove-Bruno.
'Depois de injectares a primeira cápsula, vais sentir o corpo começar a gelar por dentro. É coisa para um ou dois minutos. É o sopro do hougan que chama por Legba. São os dedos do ceifeiro que te apalpam a alma…'
'É precisa essa lenga-lenga da treta?' Um encontro de olhares, silêncio súbito. Jkar tem a nítida certeza de que está alguém por detrás do plástico. A cortina está tão suja como as paredes, como se décadas de pó se tivessem agarrado às várias manchas de vomitado, sémen, urina, fezes e sabe-se lá o que mais que escorreu pelas paredes desenhando autênticos atlas da corrupção e baixeza da espécie humana. 'Não larguei aquele guito todo para estar aqui ouvir uma série de palermices…' Acrescenta, perante o silêncio reprovador de Kano. Um olhar de soslaio, enquanto insere as cápsulas na câmara electro-magnética do injector.
'Lembra-te, um ou dois minutos. Mais do que isso e as tuas células começam a transformar-se em ácido. Tens que manter a cabeça no lugar tempo suficiente para injectares a segunda cápsula. Essa é a que abre a porta à eternidade. É por aí que espreita Legba. Vais ter o metabolismo tão lento que quase podes sentir o lisosoma a romper-se dentro de ti…
'Legba a ranger os dentes, certo?'
Silêncio.
'Um minuto. É o tempo que tens depois da injecção. É o tempo que leva a medir o homem que és. Muitos vêm perante Sable Baron pedindo audiência a Legba. Poucos são os que se atrevem a fazer a escolha nesse minuto. É o tempo que Legba demora a papar-te o cérebro. Que demora até perderes a capacidade motora. Nesse minuto, tens que tomar a decisão mais difícil da tua vida… apertar ou não apertar o gatilho… a morte como liberdade, ou a morte como prisão… Só na morte se pode viver para sempre… Que me dizes, petit chien, és homem suficiente para…
…apertar o gatilho?
É o que mais dói, pensa Rhona. Mais do que o fervilhar ácido com que os nanos subcutâneos, gravados por empatia, lhe arranham a carne. É a forma como o vê apertar o gatilho, indiferente à sua mão estendida no gesto inútil de quem procura conter o vácuo com os dedos espalmados. Orgulho pela determinação no olhar de Jkar. Homens mais pequenos, sentindo os dedos gélidos da morte arrepanharem-lhe a alma como um lençol, não deixariam de tremer, hesitando sobre a colocação da arma, sentindo a língua secar como uma rodilha, conscientes dos segundos inexoráveis que de um momento para o outro se reduziriam a zero. Mas não Jkar. Jkar nunca fora homem de hesitações. Quando chegar a minha hora, pequena gazela, hei-de cuspir nos olhos da morte. Quantas vezes lhe dissera aquilo? Quantas… quando ambos estavam enrolados nos lençóis, enrolados um no outro, as pernas negras dele a abraçarem as suas, muito brancas.
Com as lágrimas nos olhos, Rhona vê Jkar puxar a culatra da antiga Mäuser Sellin de projécteis cinéticos, certificando-se de que tem uma bala na câmara, lançar um último olhar na sua direcção e, sem hesitação, encostar a boca do cano na carne mole sob o queixo. É a melhor maneira, disse-lhe ele certa vez. Se alguma vez me apanharem numa situação em que tenha que… sabes como é. Se não tiver outra alternativa… um balázio de baixo para cima, como o cano bem enterrado no papo. Ter a certeza de que a bala passa pelo palato. É a via de menor resistência. Sem ossos que a possam desviar… direitinha aos miolos. É de fazer saltar a tampa a um gajo.
A tampa que salta, arrastando um torrão de cabelos encaracolados… que rodopia no ar até desaparecer do campo de percepção dos receptores empáticos; um espirrar de encéfalo semi vaporizado pela súbita dilatação do projéctil sobreaquecido; uma erupção de sangue, como uma borrasca invertida, desafiando a gravidade, imóvel na patética holo-projecção 3D quando a total cessação de actividade mental consciente enche os receptores subcutâneos de um formigar enfermiço, doentio, que grita morte, amputação, desespero… um grito que dura há dezasseis rotações e centenas de repetições daquelas imagens.
Rhona sabe que Jkar teve que a submeter àquilo. Caso contrário, a ligação nano-empática que fazia deles um organismo uno, que os transformava em siameses quânticos, levá-la-ia irremediavelmente à loucura. Mas o tempo não traz qualquer conforto à dor, não ameniza em nada a raiva e a impotência, enquanto analisa mais uma vez o rosto semi deformado à sua frente, com a cabeça aberta, um vulcão humano em plena erupção.
Se ao menos, por entre o sangue, os miolos desfeitos, as estilhas de osso, captado num momento infinito, o crânio arrebentado de Jkar lhe expusesse também os seus pensamentos…
'Como pudeste fazer-me isto?'
2 - UN CERTAIN REGARD
Regard conheceu Deus no centenário do dia em que o pai abandonara a família, e não considerou que fosse coincidência. Não havia coincidências no mundo. Estava escrito.
LER
Era o que a madrinha me dizia, que também era a minha terceira mãe, embora segunda do gémeo e primeira dos cinco mais novos. O gémeo não chegara à vigésima primavera, perecendo vítima da praga dos ventos das colheitas, no início do século; mal o conheci, pois parte da família tinha decidido mudar-se para o perímetro dos Territórios, atrás do pai, numa tentativa pouco feliz ou bem sucedida de lhe incutir vergonha na cara – e assim, o irmão da minha carne, poucos anos mais novo do que eu, fora acometido pela alergia fulminante, salvando-me no processo. Saí da redoma genética recondicionado mas estranhamente mais afectado pelo desaparecimento dessa criança, que eu conhecia tão mal, que a do meu antecessor – e como me emancipara entretanto, decidi proibir novas tentativas de clonagem. A madrinha, regressada e conformada, acabaria por escolher ter prole própria por partogénese. Os genes do meu pai, ou de qualquer outro homem, não voltariam a constar da linha de descendentes da família. Eu era, afinal, a única prova física da passagem daquele homem.
Recordações? Talvez ainda as tivesse, se durante a terapia me tivessem incentivado o pouco que me lembrava, então, dele. Mas nada se forma definitivamente nos primeiros dez anos de uma vida cinquenta vezes mais longa, e agora nem o rosto me surge sequer em sonhos, não me faz mais diferença. Durante muito tempo tinham-me tentado convencer que morrera, por muito absurdo que pareça (era mais comum morrer-se nesses tempos). Mais velho, descobri que afinal ingressara nos Territórios, talvez numa simulação da Primeira Guerra entre as Nações. Confesso que uma vez tentei procurá-lo nas listagens, tentei entrar como jogador, mas o Território em causa já não existia, e a máquina não me podia revelar o percurso desse utente sem autorização. A tentação de ficar por ali foi enorme, e debati-me durante meses, até que tive de tomar uma decisão. Foi assim que cresci. Se é que cresci.
Assumindo parte da culpa (nunca cheguei a saber a verdadeira causa daquele abandono de lar tão definitivo), as minhas mães não quiseram que a falta de uma presença masculina dificultasse o meu crescimento espiritual, e assim, sem dúvida apoiadas por uma terapeuta, alugaram-me uma vida emprestada. Várias, aliás, ao longo do tempo. Pertenço desta forma à geração que cresceu e se fez homem na cabana do Pai Tomás, no tempo dos verões preguiçosos e da simplicidade, que embarcou em expedições de corsários como timoteiro, que se apaixonou perdidamente por uma miudinha sardenta cheia de caracóis de nome Matilde. Vidas que contribuíam para o meu crescimento emocional, para me preparar para o mundo e suas batalhas. Da maior parte delas tenho boa memória – melhor que a da realidade monótona -, mas pessoalmente teria dispensado a Matilde. O objectivo era apaixonar-nos e depois sermos abandonados, e aprender a lidar com essas emoções. Mas não há nada de belo em apaixonarmo-nos por um personagem. Um amor que jamais será concretizado não ajuda a enfrentar a perda, como se refere até nos vários grupos de entreajuda dos antigos apaixonados por ela. Preferi enfrentá-la à minha maneira: deixei que entrasse nos meus sonhos. A cura definitiva chegou naturalmente, sem terapias: o Mosteiro.
O Mosteiro. Três mil toneladas e outros tantos milhares de anos concentrados numa estrutura maciça, inviolável e imponente, na planície de Regalis, dominando mais de metade da pequena nação. Constituido por lances de espirais que ascendiam aos céus até perder de vista, como troncos de árvores infinitos convergindo para o mesmo ponto celeste, encontrando-se no caminho, entrelaçando-se. Dois destes troncos eram tão altos, dizia-se, que chegavam ao eixo. E contavam as lendas que a intenção não era parar aí, mas chegar ao outro lado do mundo, tornar-se numa ponte física entre os dois hemisférios, e que apenas questões de engenharia, ou quiçás financeiras, se tinham intrometido. O que não impedia que fosse imponente nesta manifestação particular. Que os grandes caules dominassem a planície com a cor de ébano, absorvendo a luz e energia locais. Que se apresentasse ao longe com a sua fachada de múltiplas expressões artísticas, um fóssil vivo da evolução histórica e cultural da Comunidade. A criação do Mosteiro antecedia a das próprias nações, era quase tão antigo como o mundo. O que implicava que tinha atravessado duas guerras, várias conjunturas políticas, vira nascer e morrer espécies concebidas – e de alguma forma, os artistas que lhe animaram o rosto sentiram-se na obrigação de escrever uma história da História. Se o sopé era filho do Pragmatismo, as figuras convolutas que se moviam nos pequenos dramas nas alturas traíam as origens Impressionistas, numa mistura de Integralismo com Síntese. Um painel mostrava a concepção do Mosteiro, uma procissão de arquitectos e religiosos em torno de maquetes virtuais e as lutas e decisões e compromissos assumidos num drama animado. Mais acima contos de guerra, as explosões ferindo a face da estrutura, que logo se recompunha para ser de novo destruída. Faunos e sátiros representavam a cobiça e a estupidez humanas. E por cima de todos, estava Deus. Uma figura imponente e branca, impossível de fixar na retina pois a imagem fugia e só pelo canto do olho nos conseguíamos aperceber dos contornos, da beleza.
Aquele era o Mosteiro onde moldaria a alma. Uma alma que sentiu, logo de início ser muito pequena. Uma alma que teria de crescer e expandir-se e encher aquele bonsai monstruoso. E isso só iria conseguir após muito tempo, mesmo muito tempo.
Chegado aos sessenta anos, a madrinha decidiu que era tempo de eu escolher um rumo para a vida longa, e contribuir para o desenvolvimento do espírito. Uma ideia que rejeitei a início, envolvido que estava no rodopio próprio da juventude. Mas estar e pertencer ao mundo dos homens era algo que já me cansava, e gerir o processo produtivo – tornara-me no principal responsável por uma central de distribuição local de energia – não me dava a mesma satisfação que tinha dado. Além de que, pela terceira vez, atravessara uma relação longa e complicada, com fim à vista, e não tinha muita vontade de iniciar uma outra tão cedo. «Estás a fazer de mais, tens de começar a ser», disse-me ela, e fui deitar-me indeciso, mas acabei, ao acordar para um dia de rotina nada apetecível, por dar-lhe razão.
O Mosteiro foi a escolha inevitável. Os sacerdotes costumavam passar em peregrinação pelas nossas cidades, figuras altivas de robes negros e sabedoria nos olhos que tinham sempre uma atenção amável para com as pessoas, mesmo que incomodados pela incompreensão dos mais novos, como eu. Por muito tempo, aquele estado de espírito incomodou-me: como era possível não se ser produtivo? Abdicar da nobre função de criar e colocar no mercado? Ser-se assim tão abertamente parasita? Além de me incomodar o distanciamento, que sempre li como sendo arrogância, e o afastamento dos prazeres terrenos. Para que servia aquela gente afinal?
Numa conversa fortuita com um dos que passava, apercebi-me de que havia resposta.
- Deus conhece todos os nossos actos e adivinha os nossos pensamentos. Está a ver-nos agora – e apontou para um das dezenas de olhos electrónicos que guardavam o bar.
- A colecção de dados privados não pode ser considerado abuso das liberdades individuais? – perguntei. O missionário sorriu. Emanava dele uma calma perturbadora, quase magnética, como se possuísse um segredo terível que o fazia estar para além da vida, para além da atenção.
- Deus surgirá aos nossos olhos pelo menos uma vez antes do nosso momento final. A quem necessite surgirá mais do que uma vez. A alguns orienta, a outros simplesmente comenta. É o nosso espelho, mas não nosso escravo. A salvação está em ti.
- E se houver alguém a quem não surge?
- Surgirá a todos. Tem sido assim desde o início dos tempos.
- Todos necessitam de salvação?
- Tomos necessitamos. Mas só Deus conhece quem atravessará o Portão.
- Eu necessito?
- De que outra forma, irmão, saciarás esse teu desespero?
Estremeci.
- Acordas sem propósito, enumeras os momentos da tua vida passada como marcos que atingiste mas sem saber porquê. Os objectivos parecem-te banais, pois já passaste por eles e não conheces outros. Sentes que há mais por descobrir mas não sabes o quê. Sentes que tens de fazer uma viagem mas não conheces o destino. Estás numa depressão profunda porque nada mais te entusiasma, tudo te parece familiar. Em suma, estás farto de ti próprio. Procuras a mudança
- É um bom sumário... – comentei com algum constrangimento.
- Eu já estive onde te encontras agora, irmão. Mais uma bebida? – colocou a ordem. – Este mundo não nos prepara para entrarmos na etapa da vida dedicada à contemplação. Ainda temos em nós o mecanismo animal de executar e mostrar resultados. Mas diz-me: faz sentido ensinar quando ainda não se aprendeu? Faz sentido criar quando ainda não se acabou de nascer? O caminhar do mundo é lento de mais para se perceber num século, talvez num milénio. Se pudéssemos ver pela perspectiva de Deus, as montanhas revelar-se-iam ondas e a terra, um mar agitado. Somos formigas no tempo. Não conhecemos toda a verdade.
- Aconselhas-me a aguardar.
- Aconselho-te a observar. Mas não precisas de o fazer sozinho. A contemplação surge mais facilmente quando é orientada e partilhada – estendeu-me a mão. Trocámos contactos. – Vem ter connosco quando estiveres preparado.
Foi assim que me encontrei, um dia, no caminho para o Mosteiro.
3 - DESTENAU E O DESTINO
Destenau conheceu Deus no dia em que se viu ao espelho pela
última vez. Um encontro fugaz de olhares e um sorriso no espaço entre as
sombras. Não considerou que fosse demasiado irónico. A ironia era filha
do acaso. E tudo aquilo estava programado.
LER
Ser jovem, de novo e para sempre. Eis algo que merecia mais do que
aqueles túneis escuros e aquela omnipresente insinuação de ozono sob a
língua. Movimentos seguros, dextros. Musculatura elástica, como fibra.
Cabelo longo a vergastar a nuca na descida vertiginosa, numa sonora
cauda de rock com mais de duzentos anos. E a gotícula de aço cuspida nas
estranhas intestinais, a deslizar pelos invisíveis carris de levitação
magnética.
Desvio programado a menos de três quilómetros. Velocidade actual,
356,7 quilómetros horários. Tempo até à manobra, cinquenta segundos e
quarenta e seis milésimos. Deseja que a CompNet conduza a manobra?
Ah, não. Nem pensar. Aqui quem programa os desvios e as manobras sou
eu. Correr de dedos no bolso interior do colete, o disco externo a
reluzir fugazmente no dardejar incerto da iluminação do túnel que já viu
melhores dias. Os lábios repuxam-se-lhe num sorriso sardónico enquanto
estende o agulhão metálico em direcção do orifício escuro. Uma cópula
estéril e fria, um estreitamento de cabos ópticos, duraplast e
fibrodurânio. A consola fosfatada emite um estribilho de aviso, sobrepõe
informações.
Detectado hardware externo. Programas de activação carecem de
autorização expressa. Pretende correr os executáveis? / Trinta e três
segundos para manobra. Velocidade actual, 359,4 quilómetros horários.
Desvio programado a / SOFTWARE IRREGULAR DETECTADO NO ESPAÇO DE MEMÓRIA.
RECOMENDA-SE ELIMINÇÃO IMEDIATA. PRETENDE CORRER EXECUTÁVEIS? / menos de
500 metros. Deseja que a CompNet dirija a manobra? DESEJA CORRER
EXECUTÁVEIS?
É, a vida é feita destas pequenas coisas. O dedo paira sobre o
rectângulo vermelho intermitente que fende o opérculo sombrio da cabina
como uma ferida a pedir para ser coçada. E os dedos são para estas
coisas, pelo menos quando não queremos utilizar uma ligação neural
directa. O besouro de dez toneladas zumbe túnel abaixo, as guitarras
estridulam sob dedos virtuais, a IA gane os seus avisos e o dedo em
riste prime a tecla sanguinolenta com a inevitabilidade do destino.
O robot-IA de manutenção que Destenau surrupiara de um dos casulos
estremece ligeiramente na confluência de dois túneis, esbofeteado pela
pressão do ar nos flancos rugosos, o desvio programado esquecido numa
desobediência cega, esboçado por breves instantes na dobra serpenteante
dos túneis infindáveis. Com o vírus a espalhar-se alegremente pelo
cérebro torturado da IA, Destenau dedilha instruções apressadas no
teclado que perdeu já alguns dos caracteres sob camadas de gordura e
sarro. A primeira fase estava completa. Eis que o mapa dos túneis se
desenha no ecrã empoeirado. Uma multidão cintilante marca as posições de
centenas de composições em trânsito, de dezenas de robots de manutenção,
de milhares de cruzamentos alucinantes onde apenas o controlo frio das
IAs impede que cada comboio seja uma notícia.
Velocidade actual, 600,56 quilómetros horários. Percurso não
autorizado. Repito. Percurso não autorizado. Perdido acesso à CompNet.
Unidade de manutenção sob controlo interno. Composições 345009, 345012 e
345124 em proximidade de risco. Sugere-se imobilização imediata.
Destenau tem a sensação ilusória de perceber um tom apreensivo no
debitar da IA à medida que os seus dedos elaboram um delicioso bailado
sobre as teclas; um correr para a direita e a IA fica privada de output
de controlo, um cascatear para baixo e o robot fica invisível aos olhos
da CompNet, um crescendo sustentado enquanto hesita – 009 ou 124 – sobre
a composição que deve escolher. Preferiria a 012, se lhe fosse dada a
escolha, mas se a vida é feita de pequenas escolhas, que dizer da morte?
Não tenho medo de morrer – berrou, acompanhando a música – só não quero
é morrer já!
Aproximação de cruzamento LL-X232308, composição 345009 em rota de
colisão. Velocidade actual, 634,87 quilómetros por hora. Impacto
previsto em 0,23 minutos.
Que precisão tão meticulosa, sorri-se Destenau. 0,23 minutos. Pouco
mais de 16 batidas cardíacas, literalmente um piscar de olhos. Precisão.
Ao fim e ao cabo, tudo se reduz a isso. Mais coisa, menos coisa. A
contabilidade final é que conta. 0,23 minutos. O tempo de mover um dedo,
obrigar o robot a saltar para a frente numa súbita aceleração. Por
momentos tem a impressão de que a bocarra do túnel com que se vai cruzar
se prepara para o sugar de forma voraz. O robot sacode-se na onda de ar
comprimido que precede a chegada do comboio a grande velocidade e no
momento seguinte o ovóide balança vertiginosamente de um lado para o
outro, desafiando o campo electromagnético que o mantém estável. Parece
prestes a desatar às pancadas nas paredes ovaladas, iluminando o túnel
com leques de faíscas. E por trás dele a gigantesca composição de
mercadorias atravessa o túnel, invisível. Os comboios de carga viajam
sem luz, sem janelas, a sua presença e localização permanentemente
comunicada à velocidade da luz por feixes catódicos que os unem à
CompNet. Era assim o 009. Mas não o 124.
Destenau não precisa que a IA lhe diga nada. Quando ela começa a falar,
já ele abriu um canal neural directo para com a matriz de processamento
da IA robotizada. A voz soa-lhe no interior da própria cabeça, como se
ecoasse os seus pensamentos. Aproximação de cruzamento LZ-CG385609,
composição 345124 em rota de colisão. Velocidade actual, 819,78
quilómetros por hora. Impacto previsto em 2 minutos. Em tão íntima
ligação com a Inteligência Artificial moribunda, Destenau pode sentir a
rápida progressão do vírus pela rede, as sucessivas mutações que vai
operando em cada um dos sistemas. Quase consegue sentir o desespero da
CompNet a tentar comunicar com o módulo rebelde que desapareceu
subitamente da matriz. Nunca lhe ocorreria que o módulo de manutenção
MMT00303 se dirigisse vertiginosamente para o ponto de intersecção com a
composição 345124, onde realizaria o seu destino. O destino de Destenau.
A composição de passageiros inter-anelar 345124.
Não tenho medo de morrer, canta Destenau, enquanto o sofisticado
programa vai rompendo pelas protecções anti-virais, pelas firewalls
inoperantes, enquanto o módulo vai rasgando pelo túnel, um vulto fugidio
no intervalo das sombras. Um minuto para o impacto. É agora Destenau que
controla directamente os acontecimentos, sem intervenção dos dedos. O
teclado repousa morto à sua frente, o ecrã apenas uma superfície
espelhada para a qual não tem tempo de olhar. O vírus tacteia, estende
pseudópodes binários para a rede. Recua, reconfigura-se. Contacto.
Infiltração. O fantasma do módulo de manutenção MMT00303 surge num outro
túnel, num outro nível. Trinta segundos para o impacto. O agente
continua a reconfigurar, a testar, vamos vamos com mil diabos, Destenau
sua em bica, não tem medo de morrer, mas não tem mais de 15 segundos e
ele não quer morrer já e o vírus tacteia testa experimenta reconfigura
recombina-se e BINGO porta aberta, upload do sistema neural
Destenau pronto para ser iniciado. Pretende fazer o upload
da personalidade Destenau para a rede? IMPACTO EM DEZ SEGUNDOS. NOVE.
OITO.
Sim, sim, upload já!
CINCO. QUATRO.
Matriz neural pronta para carregamento. Pretende fazê-lo já?
TRÊS.
Sim, com mil diabos!
O túnel à sua frente ilumina-se no clarão ambarino do comboio que se
aproxima. Do destino que se aproxima. O ecrã à sua frente parece
acender-se, um espelho cego que lhe devolve o reflexo assustado do rosto
de Destenau. E, por breves instantes, sente que o coração lhe para.
Alguém mais espreita por trás daqueles olhos, um sorriso fugaz no
infinitesimal intervalo entre as sombras.
UM
Era como se a CompNet pudesse gritar.
Destenau nem teve tempo de se aperceber do sopro de ar comprimido antes
do comboio desintegrar o módulo.
Upload concluído.
Mas como, se eu ainda estou aqui? E se eu ainda estou aqui, quem é que
vai activar…? Um sorriso entre as sombras. Nos eternos micro-segundos
que leva a destruição da IA, de Destenau, do mundo próximo, a voz
agridoce ecoa, segreda, sussurra Velocidade actual, entre 560 e 3789
quilómetros horários em todas as direcções. Desagregação total da
integridade estrutural. Tensegridade anómala de 97% da estrutura. Danos
irreparáveis a nível de identidade subjectiva. Fim de vida útil. O
módulo de manutenção MMT-00303 já não existe. Continuação de um bom dia.
E depois a recepção do sinal pelos milhares de partículas que foram o
módulo de manutenção, arrastadas no sopro de ar pelo túnel em chamas,
entretecidas na malha subatómica do próprio comboio parcialmente
destruído. E a explosão. Apertada nas dobras dos túneis, seguindo as
vias de menor obstrução, conduzida pelas circunvoluções daquele
intestino artificial, rompendo por chapas de espessura inimaginável… um
clarão incandescente, pouco maior do que a ponta de um cigarro, num dos
braços da estação orbital.
Destenau podia ter considerado tudo aquilo uma grande ironia. Não fosse
o fim de uma história muitas vezes o começo de uma outra…
4 - A QUEDA DE SERBEL
1ª Parte - LER
a esfera de água, suspensa no meio da sala, em constante rotação, os jactos
de pressão de ar que a mantinham segura desenhando rugas na superfície
ele foi em tempos mulher
(este sou eu, no centro do mundo, no inicio de tudo)
o cano apontado à testa
o cabelo solto caindo em ondas negras pelo pescoço delgado, os seus olhos
lindos, castanhos cheios de lágrimas, a curva sensual dos lábios traçada a
sangue na pele tão branca
o que não gostava nela era ser tão franzina
o cano apontado à testa
(apenas um passo para dar o salto e transformar-se tão fácil tão
imediato)
sentada junto à janela, o vestido de dona-de-casa remendado cobrindo-lhe os
joelhos de idosa mas deixando a descoberto as pernas cruzadas, as pernas cheias
de manchas e reumático, de peles penduradas, cheias de tempo acumulado, a
camisola de lã a crescer das mãos atarefadas
a testa coberta de suor
queria beijar aquele rosto de princesa, queria ver os lábios soltarem gemidos
suaves que a tornariam sua, queria possui-la com violência, causar-lhe dor
quando entrasse
o que gostava nela era o ar de puta
a chávena de café a queimar-lhe os dedos e invadir-lhe as narinas e a
sensação de que aquele era o momento mais real da sua vida embora soubesse que
estava morto
a testa coberta de suor
a esfera reflecte a tua imagem, a tua imunda cara de velho, a tua imunda
alma, marcada pelos séculos de pecados e dor que provocaste, esses malditos
olhos que não se fecham para sempre, esta carne que não se decompõe
foi em tempos pessoa de outra época
(acabar assim, um ponto no céu, massa em aceleração, existência tornada
matéria)
o suor caindo para o rosto limpo de pêlos
o teu imundo rosto macilento destorcido olhando-te de volta
(abrir os braços e cair)
e aqueles lindos, suculentos lábios dizerem NÃO OS OUÇAS
a esfera reflecte a envolvência de uma sala de habitação sem luxos, prática,
com sacos de dormir fixados nas paredes e cintas de sentar fixadas no chão de
baixo e no chão de cima
(abrir os braços e cair)
NÃO QUEIRAS OUVI-LOS
dentro dele a mulher e o desejo de mulher e o querer ser frágil e suave como
as pombas e fugir à promessa
o ar de vadia que lhe causava tesão e o fazia prendê-la à cama, que o fazia
apertar-lhe os pulsos, que o levava a morder-lhe os lábios
os suculentos lábios
ABRE OS OLHOS
os olhos encarando-o de cada lado da arma, da mão, do braço estendido
ela beija-o, também o deseja, por cima agora, o cabelo caindo sobre o peito
dele, peludo, o membro pulsando mas não erecto, demasiado excitado para se
deixar ir
aproximas a mão da barba por fazer e no espelho da água existe uma figura
derrotada, de olhos encovados e face macilenta, que se interroga
a ligeira pressão no gatilho
lembra-se dela ainda viçosa, nos tempos em que sorria, em que fazia planos e
o levava ao colo para o pé do mar, e lhe contava histórias e ele sentia que
fazia parte
FAZES PARTE DE UM PLANO
(é tão bom cair)
deixando cair a chávena, o café espalhando-se pelas tuas calças, pelo chão,
deixando manchas
o medo nos olhos do outro lado da tua vontade
tu que eras outra pessoa e agora és este imundo
deixando manchas no tapete branco, a ultima oferta que lhe dera
ESTÁS A OUVIR-ME?
tu imundo és o dono da vida daquele rosto
por cima de ti gemendo na proximidade do orgasmo
os pequenos seios no conteúdo das tuas mãos
os planos nunca se concretizaram e envelheceu no canto ao pé da janela a
tricotar camisolas para ele e o irmão
e agora havia manchas de café no tapete branco
o recuo do projéctil, a fácil penetração na pele branca
ela tão húmida
(o chão a vir ao encontro dele, veloz, como a certeza de um ponto final)
PÁRA COM ISTO E ESCUTA-ME
as unhas que se cravavam nos ombros excitando-o ainda mais
os olhos surpresos pelo disparo
o punho interrompendo a perfeição da água
sonharia ainda com oportunidades do passado, albergue de vidas que nunca iria
parir
a nuca abrindo-se como pétalas rosáceas expelindo conteúdos contra a
parede
ele tão próximo do êxtase
PÁRA
o recuo lançando-o para trás na imponderabilidade
(ponto que no final da frase longa lhe iria conferir sentido)
PÁRA
os quadris dela cheios de vontade e independência
aqueles lábios suculentos que gemiam
nunca mais lhe tinha contado histórias
o tapete pelo qual chorava uma dor que não conseguia sentir porque estava
tão perto de vir-se
a esfera desfazendo-se em milhares de esferas mais pequenas molhando-o
PÁRA DE UMA VEZ E LEMBRA-TE!
Ele foi em tempos mulher, e enquanto mulher foi condenado ao martírio.
Se nada mais lhe resta na memória, este sentimento permanece, forte e
inabalável, e a partir dele define-se tudo o que de pouco representa a sua
existência. Associado ao sentimento encontra-se revolta e associado à revolta
encontra-se o desgosto. Mas não há mais nada nesta noite branca, no nevoeiro em
que dorme desde o início dos tempos, a não ser este farol imenso, esta parede
intransponível em contínuo avanço, sempre crescendo, sempre insatisfeita, de
forma que não pode recuar e é obrigado a adentrar-se no frio húmido, pisar e
escorregar em terreno incerto, ignorando o que o espera, se se irá deparar com a
proverbial parede do outro lado, com o reconhecimento do espaço finito e fechado
de uma prisão, ou então cair no abismo inesperado, um momento final de sufoco e
dor. Se nada mais lhe resta, terá a raiva como companhia, embora seja tão danosa
como a amnésia e o impeça de se concentrar e descobrir a verdade sobre si
mesmo. Nesta imensidão de nada encontra constantemente sombras e
silhuetas ao longe, que a neblina encerra. Guinchos ensurdecedores forçam-no
contra o solo, sons doridos propagam-se e são abafados, antes que consiga
perceber a origem. Ainda que tema as criaturas, sente que não deve fugir delas,
que encerram a chave deste mistério - e assim corre atrás delas, procurando
alcançá-las. Raramente consegue aproximar-se. Sempre que o conseguiu
afastaram-se no último momento, ou então mostraram-lhe vislumbres de aspectos
demoníacos que o fizeram gritar e fugir em pânico. Se fosse sensato, não as
perseguiria, porque sente que o cercam com um propósito. Sente-as como
vigilantes, orientando-lhe os passos num círculo eterno, até o universo morrer
ou terminar o período de martírio naquele plano existencial, seja lá onde for.
Não fosse a raiva que o consome, deixar-se-ia ficar ali, imóvel no mesmo pedaço
de chão, ao relento do frio e da humidade, até que a ordem natural do tempo e da
entropia pusessem, um dia, ponto final na questão. Quem estava a
enganar? Como poderia ficar quieto assim? Se nada sabia a seu respeito, tinha no
entanto uma imensidão de pressentimentos. E um deles era de não poder estar
parado. Não lhe ser permitido dormir. Não ter autorização para descansar. Os
breves momentos em que fechava os olhos eram interrompidos por valentes
sacudidelas ou pontapés. Mas ao acordar de sobressalto não encontrava ninguém.
Recuperar forças não era um comportamento aceite pelo carcereiro que o vigiava.
Se queria manter-se são e intocado, precisava de continuar a andar, eternamente
acordado num nevoeiro inerte, só, assustado, enraivecido, desolado, mera
sugestão de um ser humano. De ser mulher. ;A mulher que tinha sido. A
mulher que nem sempre tinha sido. A vaga ideia de algo temporário. A sensação de
uma clausura, de uma angústia de liberdade jamais concedida. Uma injustiça
amarga que o impelia a uma raiva brutal, embora infrutífera na ausência de
alvos. O abrir os olhos para um corpo que não era o seu, para umas pernas, ora
perfeitas de rapariga ora consumidas de artrite, inchadas, inúteis, deformadas.
O tocar numa pele que era lisa e era velha, que era alva e logo coberta de
manchas, em seios abatidos e pendentes, numa silhueta mirrada pelo desgaste
contínuo dos anos e da vontade de morrer. A morte também surge se a desejarmos
muito, todos os dias, como a um amante longínquo. O que tinha sido antes, o que
fora depois, ignorava por completo. Talvez se conseguisse ordenar as
alucinações, ou separar o que era história do que era ficção, descobrisse uma
aproximação à verdade, respondesse às questões básicas da sua culpa, da
enormidade do seu crime, que sentença era aquela e quem a proferira. Se fosse
uma sentença. Se não fosse o inferno. Ele que não acreditava no inferno. Embora
não soubesse se realmente não acreditava. Ele que outrora fora mulher,
também tinha sido homem, e enquanto homem fora poderoso e livre. Comandara
regimentos, fizera estremecer nações. Ele não sabia nada disto, e poderia bem
ser apenas um sonho de poder. Podia ter-se limitado a ser um mero peão de
sociedade com ilusões de grandeza. Seria esse o seu pecado? Habitaria uma
sociedade que condenasse a ambição? A que distância a certeza do seu
conhecimento se transformava no conhecimento de uma certeza - à distância da sua
visibilidade?, não mais que o braço que não conseguia tocar nos demónios que o
cercavam, demónios que, afirmava-lhe a voz abafada, sua única companheira
possivelmente fiel nesta terra de ninguém, o eram devido a ele, a algum acto,
vontade, decisão sua. Enquanto homem, fora livre e poderoso. Mas não tanto
quanto a mulher que tinha sido. Não tanto quanto a mulher que tinha
sido. A mulher forçada a sacrificar tudo do pouco a que se resumia a existência
dela. A mulher a quem foi negado um futuro. A mais poderosa mulher do
mundo. A mulher que tinha sido. A razão porque estava ali.
LEMBRA-TE!
Uma sala, um cárcere. Uma janela, apenas um traço. Do outro lado,
uma rotina de dias e noites, noites sem estrelas, dias pontuados por um céu de
cor fraca que ao longe desvendava terrenos e povoados. Apenas sugestões no
traço, mas os anos habituaram-na a perceber pormenores, a dar valor a esta dieta
insuficiente de informação. A antever um ritmo nos cânticos que a acordavam
algumas manhãs. A sentir que a multidão crescia e se tornava mais forte. Alguém
berrava mas não descortinava palavras. Acontecia debaixo dela, junto à sua
janela. Na sua loucura, desejava que fosse por sua causa, que exigissem a
libertação. Há muito que consumira as roupas, que se sentira necessitada de
pudor e privacidade. O pouco desta dádiva era uma imensidão na vida dela, uma
vida dedicada a conhecer a intimidade de quatro paredes, ano após ano, década
após década, até todas as arestas terem ficado gastas pela passagem das suas
mãos, até o soalho ter perdido a cor de todos os passos que dera sem ir a parte
nenhuma. Estou aqui, estou aqui, dizia, digam-lhes que abram a porta. As unhas
roídas raspavam na parede. O cabelo que não era cortado desde a juventude
esvoaçava a cada salto. A janela, apenas um traço, continuava distante no alto.
Tudo tinha sido pensado. Não tinha qualquer hipótese. De fugir. De morrer.
Apenas conseguia dormir. E sonhar.
ABRE OS OLHOS
15 cc de soro olha para a imagem sim a mancha diminui sinais positivos saco
térmico isolado já desceu abaixo dos 2 graus aguardemos alguns minutos corta o
tronco principal desata-lhe os nervos ópticos a árvore está a libertá-lo pensa
que morreu mantém o líquido a fluir está a ajudar a expulsá-lo não fazia ideia
que fossem capazes de reagir assim as árvores mais antigas são diferentes
poderão outros ocupantes interessar-nos uma coisa de cada vez gostava de saber
quem mais se escondeu cuidado reduz a intensidade olha para isto é
impressionante olha para esta actividade cortical tantos séculos que passaram e
este gajo continua a lutar para sair
ABRE OS OLHOS
- Quem és tu?
É uma pergunta pertinente, mas ele ignora-a durante alguns instantes, até que
ela se inclina sobre o peito dele e lhe morde um mamilo, o nariz prominente
enterrando-se contra as costelas, o cabelo negro de azeviche cobrindo-lhe
suavemente o rosto numa frescura de movimento. Ele grita.
Ela ri-se, deliciada. Os olhos fitam-no inquisidoramente por entre os muito
negros cabelos longos, e a boca larga abre-se para soltar um sussurro.
- Quem és tu?
Encontra-se duro dentro dela, e ela aproveita a ocasião para começar a menear
as ancas num convite de avanço que ele não poderá recusar. Em parte entrega, em
parte manipulação. Ele percebe que ela quer uma resposta. Mas não quer
arrancá-la, antes prefere seduzi-lo a oferecê-la, sentir que consegue vencer a
resistência dele através do corpo e da sensualidade, talvez convencer-se de que
existe ali emoção genuína.
Ele deixa-a mexer-se e prosseguir no ataque. Sabe como posicionar-se dentro
dela. Sabe como lhe tocar nos seios e lhe puxar as ancas para que em breve toda
a linguagem tenha desaparecido de dentro dela e nem memória nem o vestígio de
uma curiosidade restem para a atormentar.
Não que o faça sem prazer. Quando se deixa ir, ela torna-se novamente menina,
retrocede nos anos e esquece-se da necessidade de comportar-se como a quase
mulher em que se estava a tornar. Entusiasmada com a primeira viagem, com a
primeira queda do eixo, com o primeiro percurso de funicular, com a excursão
pela berma exterior. Era o mesmo sorriso, era o mesmo olhar. O olhar que
conhecia tão bem e que agora revia de perto sem que ela notasse.
As mãos viajam pelas ancas acima. Tem uma pele de alabastro perfeita, sem
traços de cor nem imperfeições, apenas dois mamilos rosados sustentados por
amplos seios que embatem contra os braços dele à medida que viaja corpo acima e
lhe sente a figura, a pele macia. O momento não é eterno, cada acto de amor é um
encontro e uma despedida, e naqueles segundos em que se fundem ele recorda-se de
outras ocasiões marcantes e contra estas mede a ocasião presente. Num mundo
perfeito, seria o melhor sexo de todos, o orgasmo que ela recordaria a vida
inteira. Embora ele permaneça distante e atento ao dever, deseja que seja assim
para ela, e não lhe interrompe os espasmos de prazer, ainda que o tempo urja.
Que abandone assim, num frémito final, a vida que sempre conheceu, o mundo que
parecia aguardá-la.
Ela abate-se sobre o corpo dele, ofegante. Ele mantém a virilidade na força
da vontade, e fá-la virar-se, cair na cama. O traço imperfeito dos lábios dela
apaga-se ante a força do olhar. Está esgotada e feliz. Mas está algo mais.
- Diz-me quem és tu.
Ele enlaça-lhe os pulsos, prendendo-a à cama. Fá-lo com atenção e carinho, e
consegue fazê-la rir-se e antecipar um momento de maior união. Depois debruça-se
sobre ela, beijando-lhe os mamilos dos amplos e generosos seios, a curva
perfeita do peito alvo.
- Conta-me.
Ele aproxima-se do pescoço. Morde-lhe os lóbulos das orelhas, traceja o arco
do ouvido com a ponta da língua.
- Diz-me.
Ele diz.
Ela ainda tenta fugir mas é obviamente tarde de mais.
ABRE OS OLHOS
E tu, finalmente, obedeces.
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NOTÍCIAS |
12.10.08 - Novo capítulo: primeira parte de «A Queda de Serbel». Na próxima sexta-feira, nova entrada.
03.10.08 - Arranca o grande romance. Mais novidades nos próximos dias. Na próxima sexta-feira, mais um troço do enredo.
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